domingo, 27 de dezembro de 2015

O embranquecimento do negro -sobre o livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie

Hibisco Roxo -capa



“Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude
não assumidas pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do
branqueamento? Como formar uma identidade em torno de uma
cultura até certo ponto expropriada e nem sempre assumida com
orgulho pela maioria de negros e mestiços?” (MUNANGA, 1999: 124)

Hibisco Roxo, Companhia das Letras -2003.
Hibisco Roxo é um livro sobre como o poder se exerce do mais forte sobre o mais fraco. Dispondo de estruturas como a Igreja, colonização e famílias patriarcais, brancos dominam negros, homens dominam mulheres, pais dominam filhos e governos dominam cidadãos.

RACISMO

Os nigerianos, assim como os índios brasileiros, sofreram um apagamento de sua cultura pelos colonizadores (No caso da Nigéria, pelos britânicos). Kambili, nossa protagonista, aprende com o pai -um fanático religioso- que a cultura dos brancos é superior. Culpa da obra missionária, que trouxe a religião católica como a correta. O pai de Kambili assimila para si os preconceitos trazidos pelos missionários e os reproduz sem ter a noção de que seu discurso se volta contra si mesmo. 

Em casa é permitido falar o idioma igbo, mas em público tem de falar o inglês, que "é mais civilizado". Não se pode cantar nas Igrejas, porque "não é algo que um branco faria". Os cantos na igreja também têm de ser em inglês (dessa vez, ordens do padre, um britânico branco). A coisa chega ao ponto de Kambili imaginar um deus pessoal e branco. Todas essas práticas acabam por resultar na perda da identidade de um povo. É o aniquilamento de uma cultura por outra cultura que se acha superior. O famoso etnocentrismo.

Em uma passagem, a personagem Amaka, menina bastante esclarecida, indaga um padre negro que está indo em missão para a Alemanha:

"Os missionários brancos trouxeram seu deus para cá -disse Amaka.- Um deus da mesma cor que eles, adorado na língua deles, e empacotado nas caixas que eles fabricam. Agora que estamos levando esse deus de volta para eles, não devíamos pelo menos empacotá-lo em outra caixa?" pág.281

Não é difícil traçar paralelos com o Brasil, em que a mesma estratégia usada lá para repudiar a religião e a cultura tradicionalista, é usada aqui para repudiar as religiões e cultura de matriz africana. A estratégia é dizer que são obras do demônio e essas práticas são porta de entrada para o inferno. Temos exemplos de terreiros incendiados por membros de religiões neopentecostais e a ala das baianas que estava encontrando dificuldade para achar membros, pois as senhoras estão aderindo a essas religiões evangélicas e sendo proibidas de participar do carnaval.

Chimamanda Ngozi Adichie, autora


MISOGINIA

O poder baseado na diferença de gênero também é mostrado. Ele é exercido contra as mulheres para sustentar a dominação masculina. A mãe de Kambili é submissa ao ponto de ficarmos com raiva de tana passividade. Mas ao longo da leitura suas razões são mostradas. Ela sofre de dependência financeira e emocional. Ela depende do marido para todas as decisões e apanha dele. Não fez uma faculdade e não possui nenhuma perspectiva de emprego.

Seus diálogos são sempre reveladores da sua condição. Ela é grata pelo marido não ter arrumado outra esposa e a tirado de casa com os dois filhos atuais. Ele pode fazer isso porque ela não lhe deu mais filhos e vem sofrendo consequentes abortos (ironicamente, abortos que são em parte consequência das agressões sofridas). 

Em um diálogo com a cunhada, ela reproduz todo o senso comum aprendido pela esmagadora maioria da população: que a mulher se realiza no casamento. E em seguida tendo filhos. Trabalhar, fazer uma faculdade não importa. No que a cunhada retruca:

"-Não sei quem vai tomar conta de quem. Seis meninas da minha turma de primeiro ano estão casadas. Os maridos vêm visitá-las de Mercedes e Lexus todo fim de semana, compram estéreos, livros e geladeiras para elas e, quando elas se formarem, eles é que vão ser os donos delas e de seus diplomas. Não entende?" pág. 84

Não, ela não entende. Também já assimilou um preconceito que se volta contra ela mesma.

FIGURAS DE AUTORIDADE

Kambili tem muita dificuldade em questionar, em ter opinião, em grande parte porque apreende da relação com o pai que não se deve questionar figuras de autoridade. Todas as ordens são obedecidas à risca. 

Talvez por estar um pouco mais abaixo que o irmão na escala de poder (ela é negra, é mulher e é jovem), ela não consegue transgredir nesse ponto. O irmão sim, começando a desafiar os costumes do pai, principalmente no quesito religioso. Vale ressaltar que os dois recebem praticamente a mesma educação.

A tática de dominação do pai é o medo. Se fizer algo fora do costume religioso, há o inferno. Se fizer algo que desagrade o pai, há os castigos, que nunca são brandos. Vão desde apanhar de vara do jardim até pisar em água fervente "para se purificar do pecado". A religião se une à ignorância para criar punições que garantem a manutenção do controle sobre os corpos.


O OPRIMIDO COMO ALIADO DO OPRESSOR

Simone de Beauvoir, no seu O Segundo Sexo, analisando os mecanismos que mantêm as mulheres subjugadas , diz que "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". A máxima fica claro durante o livro. O pai de Kambili, que sofre com o racismo trazido pelos missionários, perpetua esse mesmo preconceito pensando que a cultura dos brancos é superior. Assim é a mãe da moça, que sofre com o machismo do marido, mas reproduz esse sistema de dominação masculina pensando que a mulher deve se sujeitar a todo tipo de absurdos para ter um casamento e filhos.


Hibisco Roxo é uma excelente leitura e, como a autora mesma diz, um livro para enxergarmos o perigo de se ter uma história única, uma única visão dos fatos. É desses que vou sair recomendando à exaustão. Leiam!


Chimamanda Ngozi Adichie -autora

sábado, 19 de dezembro de 2015

O homem é um animal político -comentando o De Gado e Homens, de Ana Paula Maia


Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa


"Quase uma hora depois, Tonho despeja um saco com pedaços gordos da vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar com uma matilha de cães famintos que rodeiam o matadouro sempre que o forno do crematório é aceso. Eles agradecem e seguem de volta pela estrada repleta de sequidão e cães raivosos." (pág. 58)

De Gado e Homens, Editora Record 2013


O ser humano nasce com características intrínsecas, animalescas mesmo, e apesar de toda a cultura que muitas vezes encobre nossa natureza, continuamos sendo animais. E isso transparece em situações extremas.

De Gados e Homens é um livro sobre a rotina de um matadouro, dos animais e dos homens que lá trabalham, em especial Edgar Wilson. Ele é o protagonista cuja profissão é atordoador, função que consiste em dar uma marretada na cabeça do bicho para que ele siga para a degola. Gados, carneiros, porcos.. tudo se mata desde que gere lucro.

Desde o início fica claro que animais e homens são a mesma coisa. Estão na mesma condição. Muitos dos trabalhadores dormem amontoados no alojamento ao lado do cubículo onde se matam os animais. O teto do alojamento foi danificado e todos dormem ao relento, fazendo do alojamento uma continuação do pasto onde dorme o gado. O cheiro dos dois se mistura.

O lugar é miserável. Os moradores ao redor sofrem com a fome e percebe-se que se os trabalhadores no matadouro são o gado, os moradores são os abutres. Rondam o matadouro para carregar a carne dos animais que não sobrevivem. São atraídos pelo cheiro do crematório assim como os cachorros.



Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa

"Cumprido seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado." (pág 21)

Para existir uma vida, ela tem que se valer de outras vidas para não morrer. A vida se alimenta da morte. O homem se revela o predador em larga escala. Edgar Wilson, o protagonista, toma consciência disso e sabe que o trabalho que executa é cruel. Mas não há saídas pois o contexto sempre é relevante. Todos ali já são parte de algo muito maior. São peças que formam um todo já constituído.

De Gado e Homens é das melhores coisas que já li. Ana Paula Maia escreve de um jeito cru, rejeitando eufemismos. Suas influências são Dostoiévski, o cinema de Quentin Tarantino, dos irmãos Coen e Sergio Leone e leituras de Filosofia como diálogos de Platão, Schopenhauer e peças teatrais de Nelson Rodrigues.

Fiquei feliz em saber que uma escritora tão talentosa é mulher e negra, coisa rara de se ver no mercado editorial. 

Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Feliz 2016 com bons livros

Fiz uma lista dos melhores livros que lembrei ter lido em 2015 e coloco aqui para quem talvez esteja necessitado de alguma luz no fim do túnel do mercado editorial. A ordem é aleatória e o único critério são livros de que gostei, que me tocaram de alguma forma. Há comentários e links com resenhas. Boa leitura.


A Infância de Jesus -J.M.Coetzee
Companhia das Letras, 2013 -romance-
Escrevi sobre esse livro AQUI.


Desonra -J.M. Coetzee
Companhia das Letras, 1999 -romance
Esse foi o melhor livro que li em 2015. Rendeu ao autor o Nobel de Literatura em 2003.


Travesti -Don Kulick
Editora Fiocruz, 2008 - antropologia-
Escrevi sobre esse livro AQUI.

A Trégua -Mario Benedetti
Folha de S.Paulo, 1960 -romance-
Escrevi sobre esse livro AQUI.


O Túnel -Ernesto Sabato
Folha de S.Paulo, 1948 -romance-
Assustador. Um mergulho na mente dos caras que assassinam mulheres que dizem "amar"



Olhos d'Água -Conceição Evaristo
Pallas Editora, 2014 -contos-
Escrevi uma notinha breve e bastante tímida sobre a Conceição AQUI.


Como Conversar com um Fascista -reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro- 
Marcia Tiburi
Editora Record, 2015 -artigos-
Uma compilação de artigos escritos sobre a influência dos afetos na formação das personalidades.
Uma excelente entrevista com a autora sobre o livro AQUI.


O Filho Eterno -Cristovão Tezza
Editora Record, 2007 -romance autobiográfico-
Relato cru sobre a convivência do Tezza com o filho, portador da síndrome de Down. Tão bonito quanto sincero.


Nossos Ossos -Marcelino Freire
Editora Record, 2013
Uma das maiores surpresas. Primeiro romance do Marcelino, que era conhecido por seus livros de contos.
A Marcia Tiburi fez uma resenha linda sobre o livro AQUI.


Faça Amor, Não Faça Jogo -Ique Carvalho
Editora Gutenberg, 2014 -crônicas-
Crônicas leves sobre relações interpessoais, uma delícia de ler.


Origem -Thomas Bernhard
Companhia das Letras, 1975-1982 -ensaio autobiográfico-
A Marcia Tiburi escreveu uma notinha breve sobre o Bernhard AQUI.

A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves
Companhia das Letras, 2013
Escrevi sobre esse livro AQUI.

A Hora da Estrela -Clarice Lispector
Editora Rocco, 1977
Uma das leituras mais bonitas e sofridas.
Trechinho da Clarice falando sobre o livro AQUI.


Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios -Marçal Aquino
Companhia das Letras, 2005 -romance-
Pra ser devorado. Muito bem escrito.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Caos, Noite e Morte. Comentando A Tristeza Extraordinária do Leopardo das Neves -Joca Reiners Terron.




Um crime é cometido dentro de uma seção noturna do zoológico da cidade. Um policial civil investiga o crime, enquanto uma criatura de hábitos noturnos vive escondida em um casarão e um taxista sádico instiga seus três cachorros rotweiller a atacar tudo o que vê pela frente. Esse é o enredo.

Na Teogonia, a Noite nasceu do Caos. E da Noite nasceu a Morte. O tempo todo durante a leitura eu pensava nesse tripé Caos, Noite e Morte, sobre os quais a história do livro se sustenta. E é por eles que analiso minhas impressões.

Caos: Não há linearidade. Entre fatos, depoimentos colhidos e acontecimentos presentes, o policial apresenta flashbacks de sua infância e juventude. O caos também se apresenta na estrutura psíquica dos personagens. Todos têm algum desvio de conduta, validando a máxima que de perto ninguém é normal. O cenário, o bairro do Retiro, é um lugar que recebe fluxos migratórios de bolivianos

Noite: A história quase toda se passa à noite. Principalmente porque a criatura, uma espécie de personagem principal, tem hábitos noturnos. Creio que por ser a noite propícia para acobertar o que temos de pior, os personagens não têm nome. E assim são tantas crueldades cometidas, que elas acabam virando hábitos impessoais.

pessoa com Porfiria


Morte: É um livro que fala muito sobre morte. Fala muito sobre uma doença chamada Porfiria, que é uma enfermidade "que deixa a pele extremamente sensível à luz, com o surgimento de bolhas, necrose da pele e gengivas, prurido, edema e crescimento de pelos em regiões como o rosto". Há constantes descrições da cracolândia, onde os usuários se aniquilam nos caximbos de craque, há personagem que abusa de remédios para suportar a vontade de dormir e trabalhar em turnos duplos.

É um romance criativo, algo próximo das fábulas que ouvíamos quando crianças, mantendo seu caráter assustador. Fala sobre nossos preconceitos e nossa dificuldade de lidar com o que é diferente. E principalmente sobre solidão. E apesar de ser tão escuro, há beleza em cada página.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Escrevendo para poucos. Comentando Erefuê, do Evandro Affonso Fereira



Um homem, que se casou com uma ninfomaníaca que o traía de várias formas possíveis pelo prazer do sexo, um dia não aguenta mais e mata um dos amantes da mulher. Enquanto aguarda o julgamento, vai tendo flashbacks de sua juventude e do próprio casamento. Esse é o enredo de Erefuê.

"Quando escrevo dou o máximo de mim. Nem sempre o leitor faz o mesmo. Para escrever um livro, leio muito. Não quero dizer que isso seja bom ou ruim, mas me dedico. Logo, o leitor também tem que ser dedicado. Estou sempre querendo dificultar a vida do leitor."

Com uma afirmação dessas, sabe-se de antemão que os livros do Evandro não são de fácil leitura. Sua escrita ganhou fama de hermética pelo estilo único desenvolvido por ele. É um estilo marcado pela oralidade e palavras arcaicas ou pouco usuais e períodos com uma estrutura interessante. Eu arrisco dizer que a escrita do Evandro não seria como é se não tivesse existido Guimarães Rosa. Referências mitológicas também aparecem o tempo todo.

A Literatura é a arte que usa a palavra como matéria prima. E Evandro sabe lapidadar. Em Erefuê, há a substituição de artigos por pronomes desnecessários ao longo de todo o livro: "saudade delas alfombras macias que minha avó tecia", "nunca mais notícia nenhuma dele meu primeiro amor". Claro que os pronomes desnecessários se tornam muito necessários para sua escrita bastante peculiar.

Há também o uso recorrente de onomatopéias e interjeições: "cabeça agora pendendo pro lado esquero pof pof pof batendo na fronte como quem tenta escoar sabe-se lá pensamentos funestos", "desisto apre cabeça latejando puh melhor jogar revistinha no lixo", o que cria uma sonoridade muito original aproximando a escrita da oralidade.

"Estava ficando doentio no começo. Eu ficava uma semana, um mês, para encontrar três palavras sonoras, uma aliteração que desse uma sonoridade. E estava ficando chato. Acho que o leitor também estava achando muito chato."

Apesar de encarar seus livros mais antigos como obsessivos demais, eu gosto dessa escrita do Evandro. Após cinco livos, ele usa menos essas construções, mas usa. Gosto da escrita como desafio e a dele não é só um recurso vazio. É fruto de um esforço genuíno para construir uma boa literatura. Dono de dois sebos que faliram pelo conteúdo excelente ("fali por excesso de qualidade. O pior que tinha nas estantes era Borges"), o autor reflete suas influências na literatura que produz. Só colocamos para fora aquilo que colocamos para dentro. E em tempos de livro como mera mercadoria, ele vai continuar sendo um autor de livros para poucos, mesmo com suas altas vendagens.

"Eu sempre escrevi pensando atingir poucas pessoas. Não se escreve para muita gente pesquisando mais de mil dicionários -africano, latino, etc, etc-. Não se atinge muita gente se ao invés de louco, falar zoró. E não contente com isso, falar zoroó, zoropitó. Eu comecei minha literatura me preocupando com a vida da palavra."


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O ser humano é um devir. Minha resenha do livro Travesti, de Don Kulick



Travesti é um livro de antropologia, porém escrito para que qualquer pessoa leia. Don Kulick é antropólogo e para escrever esse livro saiu da Suécia e foi conviver por oito meses, 24h por dia, com as prostitutas travestis de uma região pobre de Salvador em 1997/1998. A diferença desse livro para o que sabemos sobre as travestis através dos veículos de informação é que Don Kulick despe-se do preconceito e resolve deixar com que as travestis falem por si.

O discurso que trata sobre as travestis no Brasil é viciado. Eles são os responsáveis pela construção da imagem de pessoas criminosas e extremamente perigosas que povoa o imaginário do brasileiro. Assim, foi uma surpresa para mim constatar que muito do que eu pensava estava bem longe da realidade.

Uma parte essencial na vida das travestis é o dinheiro. Elas são tão rejeitadas pública e constantemente, que acabam por tentar comprar o afeto de pessoas que ocupam um lugar importante em suas vidas. Geralmente as famílias que as expulsaram aceitam de bom grado os presentes e o dinheiro que elas mandam com a vida de prostituição. Recebem-nas quando elas fazem visitas. Mas cortam o contato se porventura esses mimos acabam. Os namorados são mantidos da mesma forma.

As relações com os namorados são complexas. Geralmente eles não trabalham e são sustentados pelas travestis, que não gostam nem que eles saiam de casa. E a relação dura enquanto durarem os presentes e o dinheiro dado para o uso de drogas. Se o incentivo cessar, o namorado acha uma travesti com uma oferta mais atraente. Aos nossos olhos, é uma relação abusiva por parte do homem. Mas na percepção das travestis, elas fazem isso porque gostam de estar no controle. São elas que mandam e se sentem donas de algum poder podendo bancar alguém. É como se pudessem dizer que tiveram sucesso na vida.

O conceito de gênero, de acordo como pensam as travestis, é bem fluido e varia pela forma como uma pessoa se comporta, principalmente na cama. O namorado de uma travesti pode até ser passivo para ela às vezes, mas depois disso ela vai perder o interesse por ele. Porque elas bancam um "homem", jamais outro "viado". Numa relação, a travesti não busca companheirismo nem satisfação sexual. Elas buscam gênero. Buscam se sentir "mulheríssimas". É um dos momentos em que elas emulam o gênero feminino. E os namorados falam de si mesmos como heterossexuais. E vêem sua relação com as travestis apenas como forma de obter algum lucro, materialmente. Pode até ter algum sentimento, mas é sempre secundário. Apesar das roupas "femininas", o corpo conseguido após aplicações de silicone industrial que muitas vezes dão errado, gestos e atitudes construídos, as travestis não se vêem como mulheres. Kulick deixa claro que elas são uma mistura do que pensam delas os essencialistas e os construtivistas.

Esses são apenas alguns fatos desse livro muito bem escrito. Foi lançado em 1998 nos Estados Unidos e a tradução chegou aqui em 2008. Continua atual e não esgota o assunto. Vale a leitura.


sábado, 15 de agosto de 2015

Náufrago

Paper Mache Boat -Ann Wood


O rapaz passou o café e tomou um gole. Não estava realmente com vontade. Apenas queria ficar acordado. Queria terminar o livro de poemas para a prova do dia seguinte. Lia as páginas desesperadamente enquanto umedecia o dedo na língua. Lembrou-se do livro O Nome da Rosa e ficou com medo de morrer envenenado pelas páginas dos poemas. É interessante como a paranóia nos acomete enquanto estamos sozinhos. Não somos completamente donos de nossos pensamentos. Somos também alteridade. Que desesperador.. Melhor pensar em outra coisa.

O rapaz fumou um cigarro. Não estava realmente com vontade, mas queria acalmar os nervos para conseguir se concentrar nos poemas. O cigarro não levou consigo a ansiedade, só deixou seu cheiro desagradável. O livro estava impregnado com o cheiro da fumaça de cigarros antigos. Como os cheiros carregam lembranças, as páginas lançaram no quarto um mundo inteiro repleto de passados. Reviver foi mais desagradável do que a própria fumaça.

O rapaz comeu um pedaço generoso de torta. Não estava realmente com vontade, mas sentia um vazio.. existencial, talvez. Já eram 4h da manhã e a madrugada solitária sempre acompanha a angústia. Ele nunca soube lidar direito com a solidão e não aguentava mais abrir redes sociais para não se sentir sozinho. Sua solidão não era saudável. Era  a solidão do abandono. E deixou-se abandonar nas páginas da Cecília Meireles. Chorou feito criança enquanto relia sem parar sobre o barquinho. O barquinho era metáfora para a sua vida:

"Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça."