sábado, 12 de setembro de 2009

Alzheimer


Tenho 90 anos de vida.
Não se preocupem comigo.
Raposa velha, se eu me machucar não há problema.
Aprendi a lidar com as dores.
Desenvolvi imunidade às feridas com o tempo.
Meu marido partiu para outro mundo quando eu tinha 36 anos.
Um excelente homem. Tanto que eu nunca mais quis outro.
A solidão é minha companheira desde então.
Com a a solidão veio a depressão.
A depressão é uma ave perigosa que pode iludir.
Ela nos abriga sob suas negras asas.
Quem aceita sua companhia rejeita todas as outras.
Meus filhos sempre foram uma continuação minha.
Quando eu partir, partirei feliz. Uma parte de mim ficará por um longo tempo.
Perdi 90% da audição de uma orelha e 80% da outra, mas ouço muito bem por leitura labial.
Além do mais, a boca sempre mente, mas os olhos dizem a verdade.
Idéias soltas, pensamentos intrincados.
Escrevo quando a doença me permite.
Há dias em que não lembro nem quem são meus filhos.
Há dias em que eu me lembro com detalhes o que me aconteceu há 50 anos, mas não lembro o que fiz há 5 minutos.
A memória é um labirinto. Vou penetrando por ele para tentar me entender.
Um dia eu conseguirei, mas não hoje. Não me resta muito tempo.
Quase inconsciente, escutei a voz do médico: "Sinto muito. Esses são os últimos momentos dela."
A seguir houve o choro de minha filha mais nova.
Gostaria de poder segurar a mão dela. Pois agora, só ela segura a minha.