terça-feira, 30 de outubro de 2012

Aliterações

Hieronymus Bosch -Hell
Pensando, percebi poucos poemas perpassados por pequeninas palavras passageiras parando perturbadas para protestar por paradoxos pouco pitorescos e pensantes poluindo paisagens.
Rondaram rabiscos roseanos respondendo risadas, reclamando raciocínio. Razão rasteira restava rastejando, rosto roubado. Restos de respiração.
Estatizaram. Esperar é entrever espaços: epistemologia. Eram espertos e estavam estafados. Enalteceram escuridões. Escutaram estalos, em estrépito. Esperança esvaindo-se esmaecida: engodo. Escatologia.
Lamentaram, lívidos: ladrões. Letras lutavam ladrando. Lincharam, lograram. Levaram leis, lições, locuções. Largaram lágrimas, lesões, lembranças.
Conversando com compatriotas, convenceram-nos: curariam-nos. Convalesceram. Cuidaram corretamente: Cuidado com cidadãos comunistas = cilada, cicuta. Curvaram-se. Concentraram-se. Correram conquistando contradições.
Desdenharam dos destinos doentios desenhados diabolicamente. Desconstruíram deontologias dentre dentes. Deslizaram durante dificuldades, dedilhantes.
Viram vitórias vindo velozes. Veriam vencer vontades verdadeiras. Vociferaram veementemente, verborragicamente.
Furiosos, fizeram fogos. Feriram ferozmente. Ficaram fatigados. Fabricaram fados, finais felizes. Fabricaram finais felizes. Finais, felizes..  Fim.

sábado, 27 de outubro de 2012

Abandonei o Teatro

Little Girl and Canary
Quando foi que me percebi mulher? Quando foi que a infância me deixou pra trás? Foi na primeira transa? Foi na primeira menstruação? Não, não foi na menarca. E nem quando a menstruação não desceu.
Eu lembro que quando era mais nova, eu usava shorts bem largos e camisetas velhas. Brincava na rua e fazia teatro porque não tinha vergonha de nada, muito menos de mim. Não me importava com que adjetivos usavam pra me apelidar. Já havia representado tantos papéis.. E o teatro ensina que por mais brilhantemente você encarne o outro, o que mais vale é como você representa a si mesmo. O "conhece-te a ti mesmo", enxergar cada faceta de si, é um desafio. E meu papel eu interpretava bem. A vida também é ficção, mas pouca gente sabe disso. Guardarei pra mim o segredo.
Lembro que as coisas mudaram quando chegaram os novos vizinhos. Havia um garoto, que era filho do excêntrico casal. O garoto me olhou de uma forma diferente. No mesmo instante, percebi que ele não era mais criança. E essa revelação me trouxe outra: eu também não mais o era.
O garoto foi um divisor de águas na minha infância. A partir daquele olhar, os shorts não mais serviam, e brincar na rua virou brincadeira infantil demais. Aliás, o lúdico já não podia mais. A partir daquele olhar, só serviam os vestidinhos novos e as leituras tinham que estar na ponta da língua. Ele era mais velho e conversava bem. Eu tinha que me mostrar à altura. Eu já era uma moça.
Pra minha surpresa, ele se afastou. Desprezou minhas conversas sobre literatura e filosofia e quando eu o visitava, sempre estava doente.
Consegui conversar com ele um dia. Na verdade foi mais um monólogo, quem mais falou fui eu. Ele não dizia nada, até que explodiu em ira. Gritou mais alto que eu pra me calar e disse aos berros que perdi a inocência ao interpretar outra pessoa. Eu não era a mocinha que tenta ser diferente por causa de outrem. Eu era a menina dos shorts, que não ligava pra aparência e entendia tudo de biologia. Vivia na terra. Eu era mais ética do que estética. Estatizei e lá fiquei por um bom tempo. Já era noite quando consegui me mover. Vaguei pela rua em busca de um rumo e acabei chegando em casa.
Abandonei o teatro.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Confissões

Confessione -Giuseppe Maria Crespi
Assim como aqueles que subitamente percebem que a morte está próxima e fazem um flashback de sua vida, faço agora um balanço do que chamo existência. Não serei excessivamente indulgente, assim como a vida não o foi comigo. Somos acometidos por uma moral muito besta em relação à morte. De mortuis nil nisi bonum, ou dos mortos só se fala o bem. Além do mais, como já diz outro adágio, elogio em boca própria é vitupério. Coloca-se nessa conta que a autocomiseração sempre me pareceu uma forma muito covarde de encarar a si mesmo, mesmo na morte.

Quanto ao amor, segui à risca o ideal ascético que era valorizado em meu meio. A religiosidade se tornava uma prática de vida e uma meta a ser alcançada com tal esforço, que se tornava uma espécie de dessubjetivação de nossa identidade. Os fluidos corporais nos mancham para sempre, assim diziam. E Deus a tudo observa. Me apaixonei por diversas vezes, mas não cedi. As vontades que vêm do corpo não enobrecem o espírito. A prática de banhos frios se tornou freqüente para aliviar as tensões da carne em plena madrugada de inverno.

Quanto às amizades, meus amigos são todos iguais a mim. Não sei dizer se eles sentem algum remorso pela vida não vivida. Eles se dizem muito felizes, mas ao se confessarem, não é o que parece, nem o que transparece. Um grito mudo surge ali naquelas confissões lacrimosas que a sociedade não vê. Há coisas que só se conhece por trás da cortina do confessionário, ou num divã de psicanálise.

Quanto à minha relação intrapessoal, "tomai todos e comei: isto é o meu Corpo que será entregue por vós". Diz-se que todos possuímos Deus dentro de nós. E Ele está orgulhoso de mim. Vivi interpretando o papel que escreveram para mim. Alimentei a alma também com livros. Li muito a bíblia e Santo Agostinho. Me apoiei nas filosofias dogmáticas porque as céticas me tirariam da zona de conforto. Exerci o bem também para me sentir bem. Lutei contra o aborto, contra os homossexuais, contra as religiões de matriz africana e tentei converter índios que já possuíam religiões milenares, perdidos por esse meu Brasil. É um altruísmo, mesmo que voltado para a autossatisfação.

Após esse balanço, posso morrer em paz. Ou viver eternamente no paraíso. Talvez seja uma partida do mundo sensível para o mundo inteligível das idéias platônicas. Pode ser que eu vá para o paraíso dantesco. Estranho como eu saiba tão pouco após estudar tanto. Talvez seja essa mesmo a consequência do dogmatismo.

Aceite agora essa minha confissão como como aceitei as suas por tanto tempo. E que você faça bom uso desse novo posto que irá assumir. Estou feliz de ceder a você meu lugar e desejo que você possa tomar meu relato como filosofia de vida. Não o aceite como uma réplica a seu estilo jovem e tão diferente do meu. Eu já não teria forças para a sua tréplica.