domingo, 27 de janeiro de 2013

O Retrato

Question of Balance -Brenda York


Quero me apoderar do retrato. O retrato guarda aquela parte de nós que desvanece bem devagar, riscando o rosto com navalha do tempo. O retrato não me pertence, tampouco à existência. O retrato pertence àquele conjunto de coisas que ficam entre o ser e o não-ser, flutuando na metafísica.
O retrato não é meu nem se me pertencer. O retrato encerra um paradoxo em si mesmo. Guarda minha juventude, mesmo ele sendo velho. As rugas são maquiadas pela poeira. Melhor do que qualquer pó compacto.
O retrato é causa e efeito da busca eterna pela juventude. Corremos atrás da juventude enquanto ela corre da gente. O retrato é a pedra filosofal dos esteticistas. Num devaneio, arranquei com as unhas a tinta do retrato e passei pelo corpo, principalmente o rosto. O corpo pode ser carga velha, mas desde que o rosto estampe jovialidade ninguém se atreve a emitir juízos de valor.
O retrato pode ser entendido como o medo da morte. Ele fica ali, solitário em cima de um móvel, bem visível e acessível a qualquer hora. Ao encará-lo, revivemos tempos idos. A escolha do "revivemos" não foi ocasional. Reviver é viver de novo. E nesses casos pode ser bem perigoso, por negar essa realidade (na qual morreremos) em detrimento de uma outra, que conserva utopias. E como qualquer utopia, é vazia.
Contra o retrato, pratiquemos a afirmação da essência. Nem jovem, nem velha. As denominações nos colocam em compartimentos. Pratiquemos a essência, nem precisa ficar se perguntando muito qual nome dar: alma, subjetividade, personalidade, ego, tanto faz. Religião, filosofia, psicanálise, cada um tem sua verdade.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Alteridade

René Magritte -Portrait d'Edward James


Ando em busca da minha alma
Ando em busca da subjetividade
Procuro minha identidade
Na vastidão da minha palma

Quanto pesa meu saber?
Quanto custa desconhecer?

Quero um sim e quero um não
Vindos de mim, quero dúvida e negação
Desconheço o conhecimento
Que vem pela afirmação

Quanto pesa minha personalidade?
Quanto custa minha autenticidade?

Ando em busca da minha essência
Será ela concreta ou abstrata?
Será ela pura potência?
Ou tangível, fruto de compreensão imediata?

Quanto pesa minha individualidade?
Quanto custa minha alteridade?

Ando em busca do não-ser
Ando em busca da demência
Ando em busca ausência
Mesmo que eu tenha que morrer

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Texto Sobre o Filme Amour, de Michael Haneke

Amor (Amour) França/Áustria, 12. Direção e roteiro de Michael Haneke. Com Jean Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell, Rita Blanco. 127 min.




O filme Amour perturba por tratar de temas delicados, dentre eles a velhice. A cena inicial é uma senhora morta deitada em uma cama, encontrada por policiais que invadem a casa. Já sabemos de antemão que não é um filme com final feliz. Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Louis Trintignant) são um casal de músicos aposentados que moram em um apartamento em Paris. Os dois, idosos, são muito ligados um ao outro e vivem uma vida confortável -e aparentemente feliz- até que, em um incidente à mesa de café, Anne não reage a estímulos externos. É o início da derrocada dos dois.

Anne pede a Georges que nunca mais a deixe em um hospital, e é peremptória no pedido, levando-o a seguir à risca os desejos da mulher até o fim de sua vida. Ele passa a cuidar dela com extrema diligência, e nesse ponto não há como não lembrar de: "na saúde e na doença, até que a morte os separe". Percebe-se que, nesse casal, um é parte integrante do outro. O que afeta um, afeta o outro de forma simétrica. À medida que o estado físico dela vai se tornando precário, em decorrência de um derrame que paralisa o lado direito de seu corpo, o estado mental dele vai se tornando delicado em igual medida, até que corpo e mente de ambos já são um todo danificado. Ela vai perdendo a vontade de viver aos poucos, enquanto ele enlouquece tentando trazê-la de volta à vida que esvai. Em uma cena, num ato de desespero, ele lhe dá um tapa na cara por ela se recusar a beber a água que ele lhe oferece. Ali ele extravasa todo a angústia recalcada, por não ter com quem conversar -nem com sua filha, personagem secundária, ele pode contar- e por ver a mulher, e a si mesmo, desvanecendo pouco a pouco. Interessante perceber que Hanecke não nos dá motivos suficientes para gostar de Anne. A consequência é que ficamos chocados com o tapa, mas não por partilharmos de algum afeto pela mulher, mas sim por constatarmos o grau de miserabilidade a que chegou a existência dos dois.

Haneke tem formação em psicologia e filosofia e isso transparece em seus filmes. Se em A Fita Branca ele trabalha com a lógica do proibido (link para o texto da filósofa Marcia Tiburi no final), em Amour ele trabalha com a lógica da incomunicabilidade. O filme é repleto de silêncios, seja nas cenas em que não há som, seja nas cenas em que os personagens dialogam mas não há entendimento. O silêncio também implica o isolamento imposto pela velhice, representado pela filha que a princípio não consegue entender os pais -cena em que ela os visita mas só fala de investimentos financeiros-, e pelo músico ex aluno de Anne, que os visita, mas claramente se mantém afastado e temeroso de conhecer mais sobre o estado precário dos dois. Mais tarde, ele lhes envia um CD, que Anne não mais suporta escutar, pois os sons a lembram do passado em que ela era capaz. Ela prefere, assim, o silêncio como forma de se isolar do passado e das pessoas que nele havia.

A loucura de Georges e a debilidade de Anne atingem tal ponto que a vida se torna, para os dois, um fardo muito pesado para se carregar. Ela já não quer mais viver e acaba tragando ele para o mesmo ponto de desistência da vida. Nesse ponto, Georges mata Anne sufocada usando os travesseiros e o peso de seu corpo, corpo que já é fardo pesado, assim como a vida. Ele a mata numa cena que não é sombria, mas repleta de luminosidade. Fica a impressão que era esse o desejo de Anne também, por ser ela já incapaz de tudo, até de por fim á sua própria vida. Não conseguimos nem ficar com raiva de Georges por esse ato. Hanecke nos faz sentir uma empatia por ele que gera uma solidariedade doentia, nos deixando incapazes de um sentimento de revolta. Hanecke entende bem o conceito de catarse aristotélica, nos purificando pela percepção de que somos apensas humanos, sujeitos a pulsões e capazes de atos dos quais não nos orgulharemos.

Um ponto importante do filme é a figura de um pombo. Enquanto Georges luta para trazer Anne de volta à realidade, o pombo aparece e ele o afasta, colocando-o para fora da janela. Mas quase no final do filme, depois que Anne já está morta, o pombo reaparece e ele o aprisiona e faz carinho nele, num gesto claro de aceitação. O pombo cinza, na simbologia, é tido como o negativo, o funesto (coloco um estudo sobre o pombo(a) dentro da simbologia no final). Essa visão se aplica também à morte, que é vista como algo ruim e contagioso. Pode-se entender que Georges, ao abraçar e acariciar a pomba, aceita a morte dele e a da mulher, pois Georges está louco e imagina sua mulher saudável mandando ele se arrumar para que eles saíssem de casa. O processo todo da doença da mulher também foi um processo de doença de Georges. Ele enlouquece. Alguns dirão que Georges na verdade se matou e a cena em que o casal sai de casa, na verdade representa as almas deles, que se reencontram. Esse conceito traz uma conotação muito cristã, confortante demais para que eu possa confiar nele. Hanecke não é famoso por fazer filmes de finais confortantes ou felizes.

Por fim, há a última cena em que a filha do casal entra na casa e senta-se numa cadeira. Algumas pessoas não entenderam por que ela não vai procurar os pais. Ora, essa cena representa o depois de tudo. O corpo da mãe já foi retirado da casa e o pai já está vagando, louco, pelo mundo.


*Texto de Marcia Tiburi sobre o filme A Fita Branca, de Hanecke: http://www.forademim.com.br/site/2012/09/a-fita-branca-de-hanecke-por-marcia-tiburi/
**Texto do estudo sobre o pombo(a) dentro da simbologia: http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9843/5680