terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Máquina de Fotografar Sombras

Black & White Fluid Painting -Mark Chadwick

Comprei uma câmera pra fotografar sombras. 
Me interessa muito mais o vai-e-vem de quem é furtivo, de quem escapa do olhar e fica sempre em segundo plano.
Comecei a fotografar as sombras enquanto elas estavam distraídas. 
Não é fácil. São tímidas e se escondem até à noite.
Entre um click e outro, lembrei de um amigo que passou a vida sendo sombra de si mesmo e dos outros. 
Não possuía vontades ou cedia sempre à vontade dos outros. 
Cresceu como os outros queriam, estudou o que os outros queriam, arrumou o trabalho que os outros queriam.
Se casou com uma pessoa que é seu oposto, como geralmente acontece. 
Ele foi desaparecendo aos poucos, sombra que era, e chegou o momento em que eu tirei-lhe a foto. 
Sua figura desvanecia, como se estivesse em uma pintura velha, e estava cada vez mais parecida com vapor. 
Até que chegou o dia em que ele desapareceu.
Espero que ele encontre a si mesmo algum dia.
Coloquei sua foto entre meus catálogos e parei de fotografar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Não Conheço Sua História

Ela caminhava de madrugada. Gostava do silêncio enquanto fumava seu cigarro.
Parou pra uma conversa com o mendigo, que lhe pediu um trago.
Como de costume, subestimou aquele homem maltrapilho." É só mais um vagabundo".
Mas ele falava das coisas que não se vê. Sem dinheiro, ele aprendeu sobre o que não tem valor.
Contou a ela que às vezes dói.
"Mas onde dói, moço? Você se machucou?"
Ele disse que não. Às vezes dói aqui dentro mesmo. Como Macabea, sabe?! Dói ver a vida passar e a ela não pertencer.
Ela não soube se foi pela referência a Clarice Lispector, ou pela beleza das palavras, mas percebeu que aquele homem era grande.
Achou pouco lhe dar dinheiro, então lhe deu um abraço.
O homem sorriu, um sorriso sem dentes. Mas era exatamente o que ela queria: compreensão.