domingo, 22 de março de 2015

A Trégua, sobre o livro de Mario Benedetti



Sou o tipo de leitor que não se contenta somente com a leitura. Tenho que ter uma relação física com o livro. Gosto de pegar, girar, ver cada canto, cheirar as páginas com cheiro de livro novo ou cheiro de livro guardado, alisar. Talvez  por isso eu nunca tenha gostado de livros digitais e espero nunca precisar usar.  Dizem que cada leitor tem seu ritual, e eu tenho os meus.

Esse livro estava na minha estante há bastante tempo. Ele era preterido sempre que eu iniciava uma nova leitura. Acho essa coleção Literatura Ibero-Americana, da Folha, muito bonita e com excelentes obras. Mas de alguma forma a capa desse título em especial nunca me atraiu. Essa imagem nunca me tocou.

 Assim, um dia senti uma decepção muito grande com um livro da Veronica Stigger, que tem uma arte fantástica e achei que me agradaria muito. Não consegui nem terminá-lo e coloquei de volta na prateleira, ao lado de A Trégua. O livro me olhou com olhinhos de mendigo. Creio que quem lê entenderá essa metáfora. Resolvi dar uma chance e valorizar-lhe a coragem, já que ele se colocava à prova tão destemidamente.

Fiquei encantado com Matín Santomé, personagem central e narrador do romance, que é feito em forma de diário escrito pelo próprio Martín. Creio que todo leitor gosta de imaginar que os personagens mais queridos realmente existem em algum plano. Eu sou assim. Achei Martín muito simpático e bastante sofrido (sempre tenho um carinho especial pelos sofridos). Espero que ele esteja por aí em algum lugar.

O diário nos dá a dimensão do peso da rotina vivida por esse homem de "meia idade", perto dos 50 que está prestes a se aposentar e sente um misto de expectativa e desespero ante a possibilidade do ócio. O que fazer com o tempo que ele finalmente possuirá para si?

Ele fala com muita sinceridade no diário, como poucas pessoas ousam falar para si mesmas. A família aparece aos poucos, vai sendo pintada devagar. Ele possui três filhos mas não sabe lidar com a distância deles. Sente a ânsia de comunicação, mas percebe que o tempo para fazê-lo já se foi. Sua oportunidade passou há muito. Teve de criá-los a maior parte do tempo sozinho, porque a esposa morre logo quando o terceiro filho nasce.

A esposa ocupa um lugar especial porque ele luta para reter consigo uma lembrança dela que não pertença a mais ninguém. Parece que tudo o que lembra dela é pastiche de lembranças dos outros, como se ele fosse um artista ladrão de obras alheias. A única memória que lhe resta é a tátil. Lembra do que toque em sua pele, em suas coxas, mas não é capaz de lembrar seu rosto. Os filhos parecem lutar igualmente com as lembranças. Em uma passagem muito bonita, Blanca, a filha, diz à mesa de jantar: "às vezes me sinto infeliz, só por não saber do que tenho saudade". Sofre por não se lembrar.

A rotina já pesa muito quando aparece no escritório uma mulher que vai mudar a vida de Martín. Uma mulher muito comum, que aos poucos vai se destacando dos demais comuns à volta, como sempre acontece quando gostamos de alguém, pois o sentimento é sempre construído. Essa mulher vai aos poucos dando cor ao cotidiano que estava cada vez mais cinza. Ele começa a repensar suas idéias em relação à família e a deus, com quem sempre teve uma relação conflituosa.

Mais não posso dizer porque penso que quem me lê vai dar uma chance ao livro.

ps: durante a leitura, eu não conseguia deixar de pensar na música Roda Morta, do Sérgio Sampaio, que conta sobre a "sordidez do conteúdo desses dias maquinais". É a vida do trabalhador que encara todos os dias o desbotamento da vida. Vale a pena ouvir:
















quinta-feira, 5 de março de 2015

Me Entregue Quando Eu Me Esquecer De Mim

Manfred Kielnhofer -esculturas


Gosto da simplicidade de um cachorro vira-lata. Cachorro de raça é arrogante. Ele sabe que vale dinheiro. Enquanto o vira-lata só pode contar com olhinhos de pena como moeda de troca.


Gosto de aliterações. Leio-as como quem saboreia um prato fino, lentamente. Com os sons repetidos brincando na língua e nos dentes como quem aprende o bê-a-bá.


Gosto quando alguém me chama por um apelido secreto, criando um companheirismo  que beira a cumplicidade. Sempre me ganha.


Gosto de escrever sobre a morte enquanto ela não vem.


Gosto da carga de solidão que a escrita exige. A urgência que a palavra pede na hora de ser escrita é egoísta. E eu sempre cedo.


Gosto de acordar e imaginar que vou morrer naquele dia. Gosto de viver como quem está sempre de partida.