sábado, 2 de maio de 2015

A Velha e o Menino

Old Lady With Black Cat -Herbert Johnson Harvey


Ela lhe disse que envelhecer é privilégio. Sempre o esperava na varanda, a xícara de chá em cima do pires no colo. Quando o via dobrar a esquina, andava o mais depressa que podia e pegava a latinha de coca na geladeira. A nova geração não tem paciência pra esperar a infusão liberar seu sabor. É tudo imediato. O gosto vem do simples quebrar do lacre.

Ela, do alto de seus 80 anos, julgava saber tudo sobre a vida. Mas aquele garoto mostrou-lhe que há ainda um mundo a ser descoberto. Um mundo de inocências que também tem muito a ensinar.

Em meio às bebidas, a dela quente e a dele fria, ele lhe contava sobre as dúvidas de ser criança, e tinha sede de sua filosofia. Tinha medo de Deus e queria saber sobre esse ser que protege todo mundo. "E quando é que ele dorme? Será que é aí que as tragédias acontecem? Quando Ele cochila sem querer? É um trabalho difícil e meio chato. Eu não queria ser Deus". Ela sorria. Ouvia tudo para depois comentar.

Ele dizia que queria namorar a Luiza porque ela é bonita. E o amor é bonito, como nas novelas. Mas temia não ser correspondido.

Ela lhe ensinou sobre a sabedoria do mundo. Disse-lhe que gostava da conversa com ele porque  conhecimento não é válido se não for compartilhado. Contou a ele sobre o Zaratustra do Nietzsche, que não achava que o sol seria feliz se não houvesse aqueles sobre quem brilhar. O garoto não entendeu tudo, mas gostava de metáforas.

Ela lhe disse que aprendeu com a vida que deus não existe, mas ele era livre para acreditar no ser que quisesse. E se ele fosse acreditar, que não colocasse toda a carga sobre os ombros de deus. Ele era somente o sopro inicial, o fôlego de toda a vida. Nada mais. Ela achava que o mundo não precisava mais de deus. Precisava de mais poesia. "Você pode não acreditar mais em deus, mas jamais deixe de acreditar na força de um poema". E lia para ele uma poesia do Quintana.

Contou-lhe sobre o amor na Filosofia: o amor é o sentimento que une as coisas, enquanto o ódio é o sentimento que separa. Mas que ele não se preocupasse, porque o amor era complexo e muito raro entre amantes. O que ele sentia talvez nem existisse mais daqui a algum tempo. E lia para ele uma poesia da Florbela Espanca, para que ele soubesse que o amor também pode ser doloroso, “não leve tudo a ferro e fogo”.

Ele escutava com a avidez de um aluno. Queria ser sábio como a velha um dia. Ela queria ser um pouco ingênua como o menino às vezes.

Eles sempre se despediam num abraço apertado como se fosse o último. E quando chegou o último abraço de fato, ele não teve como saber que era o derradeiro. Voltou da escola e encontrou a casa vazia. Já tinham levado o corpo da velhinha tão querida.

Queria que ela permanecesse viva, assim como estava agora em sua memória, segurando a xícara de chá entre as pernas. Então cuidou de seu jardim que só tinha natureza morta. Plantou gardênias, porque era a música que ela gostava de escutar no rádio. Achou que as flores tinham a cor da saudade. A velha ficaria orgulhosa.

A casa nunca mais foi habitada. E ele também não quis mais entrar naquele lugar. Não queria macular as lembranças que ali guardava. Então até ficar velho cuidou do jardim, incansavelmente. E imaginava as flores vivas à espera da sua figura dobrando a esquina, como uma velhinha.

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