segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O ser humano é um devir. Minha resenha do livro Travesti, de Don Kulick



Travesti é um livro de antropologia, porém escrito para que qualquer pessoa leia. Don Kulick é antropólogo e para escrever esse livro saiu da Suécia e foi conviver por oito meses, 24h por dia, com as prostitutas travestis de uma região pobre de Salvador em 1997/1998. A diferença desse livro para o que sabemos sobre as travestis através dos veículos de informação é que Don Kulick despe-se do preconceito e resolve deixar com que as travestis falem por si.

O discurso que trata sobre as travestis no Brasil é viciado. Eles são os responsáveis pela construção da imagem de pessoas criminosas e extremamente perigosas que povoa o imaginário do brasileiro. Assim, foi uma surpresa para mim constatar que muito do que eu pensava estava bem longe da realidade.

Uma parte essencial na vida das travestis é o dinheiro. Elas são tão rejeitadas pública e constantemente, que acabam por tentar comprar o afeto de pessoas que ocupam um lugar importante em suas vidas. Geralmente as famílias que as expulsaram aceitam de bom grado os presentes e o dinheiro que elas mandam com a vida de prostituição. Recebem-nas quando elas fazem visitas. Mas cortam o contato se porventura esses mimos acabam. Os namorados são mantidos da mesma forma.

As relações com os namorados são complexas. Geralmente eles não trabalham e são sustentados pelas travestis, que não gostam nem que eles saiam de casa. E a relação dura enquanto durarem os presentes e o dinheiro dado para o uso de drogas. Se o incentivo cessar, o namorado acha uma travesti com uma oferta mais atraente. Aos nossos olhos, é uma relação abusiva por parte do homem. Mas na percepção das travestis, elas fazem isso porque gostam de estar no controle. São elas que mandam e se sentem donas de algum poder podendo bancar alguém. É como se pudessem dizer que tiveram sucesso na vida.

O conceito de gênero, de acordo como pensam as travestis, é bem fluido e varia pela forma como uma pessoa se comporta, principalmente na cama. O namorado de uma travesti pode até ser passivo para ela às vezes, mas depois disso ela vai perder o interesse por ele. Porque elas bancam um "homem", jamais outro "viado". Numa relação, a travesti não busca companheirismo nem satisfação sexual. Elas buscam gênero. Buscam se sentir "mulheríssimas". É um dos momentos em que elas emulam o gênero feminino. E os namorados falam de si mesmos como heterossexuais. E vêem sua relação com as travestis apenas como forma de obter algum lucro, materialmente. Pode até ter algum sentimento, mas é sempre secundário. Apesar das roupas "femininas", o corpo conseguido após aplicações de silicone industrial que muitas vezes dão errado, gestos e atitudes construídos, as travestis não se vêem como mulheres. Kulick deixa claro que elas são uma mistura do que pensam delas os essencialistas e os construtivistas.

Esses são apenas alguns fatos desse livro muito bem escrito. Foi lançado em 1998 nos Estados Unidos e a tradução chegou aqui em 2008. Continua atual e não esgota o assunto. Vale a leitura.


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